Cem Noites Tapuias

1- O Filho do Garimpeiro

    À margem dos rios diamantíferos, isto é, daqueles em que cujas areias existem diamantes, reúnem-se homens audaciosos e aventureiros animados por um grande sonho: o encontro de pedras valiosas.

    Quincas Venâncio era um desses garimpeiros. Levava uma vida de pobre, vida difícil e sem conforto, em seu rancho humilde, mas uma esperança enriquecia-lhe o coração: um dia _ e quem sabe não estaria perto? _ um achado precioso o arrancaria daquela miséria. E então haveria de bendizer os sacrifícios corajosamente feitos! Vira chegar a vez de muitos companheiros. Outros veriam chegar a sua!

    A fortuna podia demorar um pouco, mas sempre vinha. A sorte experimentava a paciência dos garimpeiros; as compensações que oferecia, porém, pagavam tudo. O que era preciso era trabalhar continuamente, sem desânimo. E Quincas Venâncio era pertinaz.

    Trabalhava no Rio Poxoreu e morava com seu filho Quinquim perto da mata virgem, tão perto que, à noite, ouviam miados de onça rondando o curral, que era feito de grossos paus bem unidos e fechado por cima como uma jaula.

    Certas noites, o atrevimento da “pintada” passava da conta, e vascas, bezerros, cavalos, cabritos e galinhas faziam um alarido medonho. Quincas Venâncio abria então a janela e dava tiros de carabina para o ar, afugentando a fera. Tudo silenciava a seguir e os animais repousavam tranqüilos até amanhecer.

    Na casinha, apesar de coberta de sapé, pai e filho se sentiam seguros. E o menino se acostumara, de tal modo, às visitas noturnas da “pintada”, que se sentava na rede ao ouvir o miado, à distância, e avisava o pai:

    _ Pai! Aí vem o gatão!

    _ Durma sossegado, meu filho. Não tenha medo que aqui ele não entra, respondia-lhe o garimpeiro, enquanto examinava os cristais que colhera durante o dia, mergulhando no Rio Poxoreu.

    Quinquim vivia naqueles sertões de Mato Grosso desde os três anos. Aos seis, perdera a mãe, de uma febre palustre. E sua vida mudara muito: ela lhe contava comoventes histórias sertanejas e o embalava com cantigas tapuias, de que ele gostava imensamente.

    _ Mãe, cante aquela do serelepe dorminhoco, ele pedia, assim que as pálpebras pesavam de sono.

    E ela, balançando-lhe a rede, cantava numa voz doce e sentida:

    _ Acutipuru, ipurá

    Nerupecê iuarama.

    Repetia o canto, cada vez mais baixinho, até que o menino adormecia.

    Mas o que lhe causava maior prazer era ouvir as lendas e histórias tapuias. Nunca se cansava da história da filha da Cobra-Grande, que mandou buscar a noite na casa de seu pai; do curumim que subiu ao céu nas asas de uma andorinha; dos macaquinhos da boca preta, que nunca achavam tempo para fazer suas casas; da moça que queria a estrela da tarde, para brincar com ela.

    Com a morte da mãe, Quinquim entristeceu e ficou manhoso. Todas as noites,  chorava com saudade dela. Sentia falta de seu carinho, de suas canções dolentes, de suas histórias maravilhosas.

    Quincas Venâncio tudo fazia para alegrar o filho. Levava-o todas as manhãs ao rio, onde inúmeros garimpeiros trabalhavam com ele. O menino ficava entretido, vendo aqueles homens valentes e ambiciosos à cata febril de diamantes, no leito profundo das águas. Mas o que mais o impressionava era ver o pai meter-se dentro de um escafandro e mergulhar em algum poço do rio. Naquela vestimenta impermeável e frouxa, com botas de grossas solas de chumbo, couraça e máscara de metal, parecia um verdadeiro fantasma... E Quinquim ficava pensando na curiosidade que deviam ter os peixes, diante daquele homem estranho, que tinha quatro janelinhas envidraçadas na cabeça, por onde podia espiá-los...

    A princípio tinha medo que o pai morresse afogado. Quincas Venâncio, porém, explicara-lhe que dentro do escafandro não entra água e por isso o escafandrista não se afoga. Mas poderia morrer asfixiado, se a bomba, de repente, deixasse de funcionar. Essa bomba, instalada à margem do rio e ligada ao escafandro por meio de um tubo, é que fornece ar ao mergulhador; seu trabalho, portanto, precisa ser regular, constante e dirigido por um bombeiro de confiança.

    Distraído com o perigoso trabalho do pai, Quinquim se portava durante o dia, como um verdadeiro homem. Andava de cá para lá conversando com os garimpeiros, animando-os, chamando-os por apelidos engraçados, e colecionando os seixos roliços e coloridos, parecidos com ovos de aves que eles lhe traziam sempre estavam de volta à tona d’água.

    Com sua alegria e graça conquistara o coração daqueles rudes homens sem família, que acabaram querendo-lhe bem como a um filho. E não sabiam trabalhar sem a sua companhia.

    À boca da noite, voltava com o pai para casa e já não era o mesmo: tinha medo de sombras, via jaguaretês escondidos nas moitas e o psiu da suindara lhe parecia um chamado de alma do outro mundo.

    _ Que é que você tem, meu filho, que anda tão medroso?! Você nunca foi assim, dizia-lhe o pai, impressionado.

    Mas Quinquim também não sabia explicar. E em casa, seu nervosismo piorava. À hora de dormir, chorava sempre de cortar o coração. E muitas vezes despertava durando a noite, assustado, gritando pela mãe... Quincas Venâncio não sabia mais o que fazer para controlar o filhinho... Perdia horas de sono pensando num meio de curar o menino daqueles terrores noturnos... Supersticioso como era, acreditava em maus-olhados, quebrantos e outras fantasias populares. Quinquim era, para o sertanejo, o garotinho mais esperto e bonito do mundo! E poderia estar sofrendo em conseqüência da feitiçaria de alguma pessoa invejosa, ele pensava.

 

2 - A Professora Borora

 

Certo dia, um mergulhador chamado Chico Pongá disse a Quincas Venâncio:

    _ Você é um homem de sorte!

    _ Não sei por que diz isso. Só tenho achado diamantinhos de pouco valor. Você, sim, é que já apanhou dois daqueles azuizinhos como água de querosene... respondeu Quincas Venâncio.

    _ Que adiantou isso?! Não tenho família, vivo sozinho neste mundo de Deus! Ao passo que você tem um filho que é uma graça, corajoso e alegrinho como um periquito-rei!

    Quincas Venâncio soltou um suspiro e respondeu, olhando para o filho que fazia uma força danada, ajudando a tocar a bomba de ar:

    _ Ah! Meu amigo, você tem razão. Quinquim, não é por ser meu filho, enche a vista da gente. Mas só é alegre de dia. De noite entristece e chora como um urutau agourento...

    _ Por quê? Indagou Chico Pongá, admirado.

    _ Sei lá! Talvez saudade da mãe... desde que ela morreu que ele chora assim.

   _ Sente falta dela, coitado! Carinho de mãe não tem igual neste mundo. Quantos anos ele tem?

    _ Está beirando os sete.

    _ Então, está no ponto de ir para a escola. Quem sabe se não é isso que está lhe faltando? Precisa de companheiros de sua idade para brincar e de uma boa professora para ensinar-lhe as primeiras letras.

    _ Mas como?

    _ Na Vila de Poxoreu, continuou Chico Pongá, há uma professora que nasceu bugra mas ensina melhor que muita gente branca!

    _ Não acredito. Para mim, bugre e fera são a mesma coisa. São traiçoeiros e maus e não aprendem nada.

    _ Você diz isso porque não teve convívio com os índios e não conhece Joana Borora. Não sabe que coração tem ela! Quanta bondade e sabedoria!

    _ Já ouvi falar nessa Joana Borora, educada pelos missionários desde menina. Mas nunca a vi. Quando vou à vila é sempre de corrida.

    _ Pois é pena.a escola dela é um pouco retirada e ela não tem tempo de passear pelas lojas. Está sempre ensinando: de dia as crianças, de noite os mais velhos. Não faz outra coisa. Também sua fama já chegou a Coité, a Cachoeirinha, a Santo Antonio do Rio Abaixo e não há de esperar muito para chegar a Cuiabá.

    _ Será que ela dava um jeito na tristeza do Quinquim?

    _ Na certa.

    _ Qual! Duvido muito!

    _ Não custa experimentar.

    _ Está bem, Chico Pongá. Vou seguir o seu conselho. Este domingo vou dar um pulo em Poxoreu, com o meu garoto, a fim de conhecer Joana Borora, essa prenda nascida no mato... Se você está dizendo a verdade, deixarei o menino com ela.

    _ Vá mesmo que não se arrependerá...

    _ Vai me custar muito, mas já que é para o bem dele... concluiu Quincas Venâncio, prevendo a tristeza de seu rancho, sem aquele companheirinho precioso.

    

3 - A Doença

 

Na manhã seguinte, era um sábado, Quincas Venâncio despertou muito cedo. Como de costume, aprontou o café e tratou de acordar o filho que dormia a sono solto, todo encolhido na rede:

    _ Acorde, Quinquim! O café já está pronto!

    Mas o menino deu um gemido, encolheu-se mais e não atendeu ao pai. Este, desconfiado, passou a mão pela testa do filho e murmurou apreensivo:

    _ Está com um febrão! Será que ele apanhou a maldita palustre?

    Dizendo isto, aprontou uma caneca de café, cortou um pedaço de angu de fubá e veio oferecer ao filho, sacudindo-lhe o ombro:

    _ Você hoje está dorminhoco, Quinquim. Olhe aqui o café!

    Mas qual! Ele nem dava acordo de si. O pai, assustado, sacudiu-o com mais força até que ele se esticou, dando um gemido, e abriu, por fim, os olhos. Quincas Venâncio aproveitou para insistir:

    _ Levante, Quinquim, está na hora! Vamos que hoje vou ensiná-lo a nadar e mergulhar!

    Por um momento, a tentação daquele convite fez brilhar os olhos de Quinquim. Logo, porém, fechando-os novamente, murmurou com uma voz cansada, diferente da sua:

    _ Agora não, pai, me deixe dormir mais um bocadinho.

    _ Você está doente, meu filho? Perguntou-lhe Quincas Venâncio, passando-lhe a mão pela cabeça, carinhosamente. Sente alguma dor? Alguma aflição?

    _ Não, pai; não sinto nada. Mas tenho sono... explicou o menino. E dando as costas, encolheu-se outra vez e continuou a dormir.

    Quincas Venâncio tomou o café preocupadíssimo. Não podia faltar ao trabalho. Mas também não podia forçar o menino a acompanhá-lo, visto que estava indisposto. Que fazer? Não havia outro remédio senão deixá-lo sozinho em casa.

    Foi de coração cheio de angústia que tomou essa decisão. Era a primeira vez que acontecia isso. E só Deus sabia quantas vezes teria de acontecer o mesmo, enquanto não tivesse alguém para tomar conta da casa na sua ausência. Sua dura profissão não lhe permitia ficar no rancho quando o filho adoecesse, ainda mais porque de seu trabalho dependia o trabalho de muitos outros, e, entretanto, Quinquim era muito pequeno pra ficar sozinho por aquelas paragens tão cheias de surpresas e perigos.

    Mas não havia tempo a perder: arranjou no embornal o seu almoço, preparado de véspera, e foi despertar Quinquim de novo, fazendo-lhe muitas recomendações:

    _ Meu filho, você está com lombeira hoje porque não tem dormido direito estas noites. Então durma bastante. Quando tiver fome, levante que seu almoço está pronto. É só tirar das panelas. Está ouvindo?

    Quinquim olhou o pai, apertando os olhos, e respondeu bocejando:

    _ Estou, pai.

    _ Então está bem. Fique quietinho, descansando, que eu quero, na volta, encontrar você são. E repetiu, sorrindo para o filho: sãozinho, sim? Nada de doenças, entendeu?

    _ Entendi, pai, respondeu Quinquim.

    _ Pois, então até de noitinha.

    _ Até, respondeu o menino em voz muito baixa.

    Quincas Venâncio foi até a porta; sentiu o coração apertado; e voltou de novo para perto da rede, para explicar ainda:

    _ Escute, Quinquim.

    _ Estou escutando.

    _ Vou fechar a porta e botar a chave por baixo. Quando eu voltar você abre pra mim?

    _ Abro, sim.

    _ E olhe, outra coisa: não abra a porta para ninguém,viu? Nem saia de casa. A “pintada” também ronda durante o dia, quando está com muita fome... E você sabe que ela é muito atrevida!

    _ Sim, pai.

    _ Até a volta, então.

    _ Até a volta.

    Quincas Venâncio afastou-se sem pressa; saiu, fechou a porta por fora, passou a chave por baixo conforme combinara, e ainda parou um momento pensando que outras recomendações poderia fazer ao filho. Não lhe ocorreu mais nada e se afastou, de alma aflita, a caminho do Rio Poxoreu.

    Dentro do rancho humilde e sem conforto, Quinquim fechou osolhos e adormeceu de novo.

 

4 - O Feliz Achado

 

    Quincas Venâncio trabalhou com o escafandro a manhã toda. No fundo da corrente, catava os seixos, mas seu pensamento estava no filho, cujo vultinho, encolhido na rede, não lhe saía dos olhos. Que teria o coitado? Já estaria de pé? Como se sentiria sozinho?

    Cerca das dez horas, voltou à tona para almoçar. Estava cansado e triste. De longe, Chico Pongá desconfiou e veio comer o farnel a seu lado. Os garimpeiros já haviam notado a ausência do menino, mas não sabiam explicá-la. E Chico Pongá queria indagar ele. Por isso perguntou, sem entrar logo no assunto:

    _ Que tristeza é essa, Quincas Venâncio?

    _ Estou sem sorte, Chico Pongá.

    _ Não dê mau pago a Deus! Basta pensar no filhinho que você tem para não poder falar assim.

    _ Pois é por ele mesmo que eu digo. Imagine que amanheceu com febre e eu tive de deixá-lo sozinho. Não sei como vai se arranjar.

    _ Ora, febre em criança é coisa corriqueira. Passa da noite para o dia. Amanhã estará bom.

    _ Acho que sim. Mas é que ele ficou só. Estou preocupado.

    _ Outra bobagem. Seu filho é um homenzinho, já sabe bem o que faz. Se fosse outro menino não diria nada. Mas Quinquim pode ficar só sem perigo. Não se preocupe. E agora, mudando de assunto: seu mergulho rendeu hoje?

    _ Não. E o seu?

    _ Somente umas “formas” sem importância: um “feijão”, um “ovo de pomba”, dois “lacres” e três “azulinhas”, explicou Chico Pongá, enumerando pedras de várias cores, chamadas “satélites”dos diamantes porque às vezes são encontradas onde eles existem.

    _ Eu nem isso! Nem uma “pretinha” sequer, para consolar.

    _ Não importa, Quincas Venâncio. Nem sempre essas pedras à-toa querem dizer que há diamante por perto.

    _ Isso eu sei. Mas, de qualquer forma, umas pedrinhas pintadas, como essas que você achou, consolam a gente e dão esperanças de encontrar um graúdo, de primeira água!

    _ Qual! Não perca a esperança. Vá mergulhando e catando. Quando menos você esperar, acha um e fica rico!

    Quincas Venâncio havia acabado de fazer a sua refeição. Ergueu-se então e respondeu:

   _ Nesse caso, vou mergulhar de novo para aproveitar o resto do dia, que hoje quero voltar mais cedo para casa.

    Separaram-se. Quincas Venâncio meteu-se em seu escafandro e sumiu na corrente.

    Ao entardecer deu sinal a José Piquete que tomava conta da bomba. Este puxou imediatamente o escafandrista pela corda. Que teria sucedido? Quincas Venâncio costumava demorar mais tempo em suas pesquisas. A surpresa de José Piquete aumentou quando viu que o companheiro saía do aparelho pálido e trêmulo. E indagou assustado:

    _ Que é que houve? Está sentindo alguma coisa?

    Quincas Venâncio moveu a cabeça negativamente e, apontando para uma vasilha em forma de funil que tinha na mão, mal pôde responder:

    _ Veja aí... no calombé...

    José Piquete olhou curioso para o interior da vasilha que continha a colheita de cristais, trazida do fundo do rio, e exclamou, entusiasmado:

    _ Viva Deus! Você está rico, Venâncio! Nunca vi tanto diamante junto!

    _ Não exagere, Piquete. O que você vê ai são alguns diamantinhos pequenos, uns “xibios” de pouco valor. E o resto são cristais sem valia. Mas, olhe: há um que vai me dar um bom dinheiro.

    _ É este aqui, afirmou José Piquete, apanhando um cristal do tamanho de um ovo de pomba e olhando-o contra o sol. Este aqui vale um milhão!

    _ Milhão de que, homem?

    _ Milhão de cruzeiros! De que havia de ser?

    _ Você está sonhando, Piquete! Você está sonhando. Examinou o diamante mais uma vez e acrescentou: É um diamante de valor, está se vendo, mas não alcança este preço.

    _ Quanto aposta?

    _ O que você quiser.

    _ Não, diga você!

    _ Está feito. Se este diamante valer um milhão, eu lhe darei, além da parte a que você tem direito, mais dez mil cruzeiros. Fechado?

     _ Fechado! Concordou José Piquete, cheio de alegria.

    E apertaram-se a mão afetuosamente.

    A conversa foi tão alvoroçada que atraiu outros garimpeiros, mergulhadores, bombeiros e bateadores. E em pouco, todo aquele rancho de aventureiros da fortuna, em número de cinqüenta, estava festejando a feliz descoberta de Quincas Venâncio.

    Chico Pongá foi o primeiro a examinar a gema preciosa e a dar um apertado abraço em seu amigo, perguntando-lhe:

    _ Eu não lhe disse, Venâncio, que você era um homem de sorte? E que sorte! Com esse diamantão você não precisa mais mover uma palha! Pode dormir sossegado e criar o Quinquim na Capital.

    Quincas Venâncio não respondeu. Todos queriam abraçá-lo, examinar a pedra, tocar na mão dele para “pegar” sorte... Afinal, um dos mais entusiasmados com a extraordinária novidade, exclamou convidando o grupo:

    _ Vamos a Poxoreu festejar o sucesso, que o dia de hoje já está ganho!

    _ Vamos! Concordaram todos, dando tiros de carabina para o ar.

    _ Mas eu, infelizmente, não posso, explicou Quincas Venâncio. Tenho que ir ver Quinquim, que deixei em casa, doente.

    _ Pois então vá vê-lo. Se ele estiver melhor, vamos levá-lo também, porque a festa é dele, disse Chico Pongá.

    _ Vá, insistiu Piquete, que nós o esperamos aqui.

    Quincas Venâncio colocou os cristais numa capanga, uma bolsa de couro que costumava trazer a tiracolo, e partiu para casa correndo, mas não tão depressa quanto seu coração desejava.

5 - Mistério!

 

Quincas Venâncio vinha botando a alma pela boca, mas só parou de correr quando chegou ao terreiro de casa. Tinha pressa de rever o filho para saber de sua saúde, mas estava também ansioso para dar-lhe a boa notícia! As preocupações com que saíra pela manhã misturavam-se agora com a alegria que lhe causara aquele achado precioso... De longe, porém, observou que a janela estava aberta e a porta escancarada. E pensou: _ O garoto me desobedeceu, abrindo a porta! Em todo caso é sinal de que já está bom. E entrou pelo rancho, chamando-o:

    _ Quinquim! Meu filho! Estamos ricos! Achei um diamante graúdo, de primeira água! Um bambúrrio!

    Enquanto falava, percorreu a pequena morada e não encontrou ninguém. Sobre o fogão de tijolos viu as panelas cobertas; destampou-as e, pela quantidade de comida, verificou que o filho almoçara com bom apetite, o que lhe causou prazer. Mas era preciso encontrá-lo o quanto antes. Quincas Venâncio foi ao curral; procurou-o depois pelo paiol, pelas pacoveiras que havia nos fundos da roça, gritando sempre:

    _ Quinquim!... Quinquim!... Ó Quinquim!...

    Nada! Ninguém respondia ao seu chamado. A tarde morria. Os pássaros volviam aos ninhos e as galinhas procuravam os poleiros. Onde teria se metido o garoto? Perguntava a si mesmo, intrigado, sem cessar suas buscas. Ah! Com certeza estaria no córrego, brincando com o pequeno monjolo que ele próprio fabricara. Este pensamento o encheu de esperança. Mas no córrego não viu ninguém; as águas deslizavam mansamente, só de quando em quando arrepiadas pela viração da tarde. O silêncio era quase absoluto. Quincas Venâncio estava zonzo, sem saber o que fazer. Chamou, chamou e chamou... Nenhuma resposta! Deu batidas nas moitas de “saia-branca”, desconfiando que o filho se escondera por brinquedo. Só conseguiu espantar “almas-de-gato” que fugiam num vôo rasteiro, soltando pios lamurientos, para ir pousar em moitas mais distantes.

    Foi, então, que lhe ocorreu uma idéia aterradora. O filho poderia ter entrado pela mata, atrás de algum passado, e a temível “pintada” o teria, talvez, surpreendido. Quincas Venâncio tudo fez para afastar esse terrível pensamento, mas não o conseguiu. Correu, então, angustiado, para casa, apanhou a carabina que estava pendurada à parede, colocou o cinturão de balas, fechou a janela e a porta e entrou pela mata, gritando pelo filho. À medida que penetrava, porém, a escuridão ia aumentando e em breve parecia noite fechada. Fazendo porta-voz com as palmas das mãos, o pai, aflito, berrava:

    _ Quinquim!... Quinquim!... Ó Quinquim... im!...

    Sua voz reboava por entre os troncos. De vez em quando, parava um instante, na ansiosa espera de uma resposta, uma queixa, um gemido, qualquer sinal enfim de que o filho ainda vivesse. Em vão! Só escutava barulhos de asas e sussurros de ventos, nas folhas.

    Desesperado, Quincas Venâncio voltou atrás, tirou do curral o alazão marchador, botou-lhe os arreios, montou e partiu a galope na direção do Rio Poxoreu.

 

6 - O Rapto

 

    Os garimpeiros o esperavam à margem do rio. E assim que o viram apontar na picada, sacaram as armas e o saudaram, segundo o costume, com um tiroteio cerrado para o ar.

    _ Viva Joaquim Venâncio! Gritou José Piquete.

    _ Viva nosso milionário! Bradou Chico Pongá.

    E novamente descarregaram as armas. Mas qual não foi a surpresa de todos quando repararam na expressão de desespero de Quincas Venâncio! Fez-se um silêncio geral. Foi quando, sofreando as rédeas do animal, ele falou aos companheiros numa voz surda, cerrando os dentes:

    _ Meus amigos! Aconteceu-me uma grande desgraça!

    A roda fechou-se em torno dele, e perguntas choveram de todos os lados:

    _ Perdeu o diamante? Indagou um.

    _ Quinquim piorou? Interrogou outro.

    _ Encontrou a roça devastada? Quis saber um terceiro.

    Quincas Venâncio meneou a cabeça e explicou:

    _ Mil vezes pior que tudo: perdi meu filho...

    _ Quinquim?! Perguntaram todos a uma voz.

    _ Sim, respondeu simplesmente o desolado pai.

    _ Mas como? Que houve? Teve um ataque de febre? Feriu-se? Indagaram de todos os lados.

    Quincas Venâncio, porém, fazia gestos indecisos, demonstrando não saber explicar, o que deixava atordoados os demais garimpeiros. A muito custo, no entanto, contou com voz trêmula:

    _ Não posso dizer o que houve, nem como foi. Só sei dizer que deixei o menino na rede, adoentado, perrengue, esta manhã, e agora, ao chegar em casa, encontrei a porta aberta e tudo deserto. Chamei por ele e nada... Saí, procurei-o por toda a parte, no pacoval, no córrego e até dentro da mata! E nem sombra dele!... Não sei que fim o coitadinho levou.

    Chico Pongá, animado como sempre, tentou reanimar o amigo:

    _ Não fale assim, Quincas Venâncio, que seu filho aparece de uma hora para outra. Com certeza, curioso e travesso como é, foi dar um passeio e encontrou alguém que o levou à vila. Você sabe que ele é conhecido e querido de todo mundo.

    _ Não pode ser, Chico, infelizmente, não pode ser. Justamente hoje pela manhã recomendei-lhe que não saísse nem abrisse a porta para ninguém. E ele é menino obediente.

    _ Mas você encontrou a porta arrombada?

    _ Não.

    _ Encontrou algum sinal de violência?

    _ Não. Até a chave ainda estava na porta.

    _ Estava? E do lado de dentro?

    _ Do lado de dentro.

    _ Então? Não digo que foi o menino? Olhe, ele abriu a porta e saiu. E se saiu foi para algum lugar onde, na certa, será encontrado.

    _ Encontrado?! E se a “pintada” o pegou? Indagou aflito Quincas Venâncio.

    _ Deixe de estar pensando em bobagem. Se ela pegasse Quinquim, então não deixaria sinal? Pelo menos sangue havia de haver pelo terreiro. Não pense mais nisso. O que precisamos fazer é procurá-lo antes que chegue a noite. E, voltando-se para os companheiros, Chico Pongá concluiu:

    _ Camaradas! Temos que ajudar o amigo Quincas Venâncio. Vamos juntos procurar nosso Quinquim?

    _ Vamos! Concordaram os garimpeiros, sem discussão.

    E assim aqueles homens, que se dispunham a festejar, em conjunto, o achado de um extraordinário diamante, uniram-se para auxiliar um pai extremoso a procurar o seu filho perdido.

7 - Na Vila de Poxoreu

 

Quincas Venâncio chorava de gratidão, diante da solidariedade de seus companheiros de trabalho. E não tocou o animal. Chico Pongá, porém, era homem de iniciativa e tinha de levar adiante o seu plano. Por isso ordenou:

    _ A caminho da vila! E, voltando-se para ele, acrescentou:

    _ Toque, Quincas Venâncio! Vá na frente que nós vamos apanhar a nossa montaria e o alcançaremos logo.

    E assim foi feito. Quincas Venâncio entrou na Vila de Poxoreu, cerca de cinqüenta cavaleiros o acompanhavam.

    Era quase noite fechada. Os poucos habitantes da vila, no entanto, não se haviam recolhido às suas casas: estavam alvoroçados pela rua principal, diante do armazém de um antigo garimpeiro, chamado Nico Manco. A cavalhada venceu em alguns segundos a distância que a separava do local da aglomeração batendo, com estrépito, as ferraduras nas pedras do caminho. Quando os moradores da vila se voltaram, surpreendidos, já Quincas Venâncio e seus amigos desmontavam e amarravam os animais a argolas de ferro, incrustadas na calçada ou em pequenos mourões, e penetravam no recinto, ansiosos por informações e novidades. Dois lampiões de querosene, colocados em cima do balcão, iluminavam as fisionomias daquela gente rústica. Em mangas de camisa, Nico Manco falava tão alto que pareia discursar. Mas, à chegada dos cavaleiros, fez-se silêncio. Passado um momento, porém, reconhecendo Chico Pongá e os demais companheiros, o comerciante perguntou-lhes:

    _ Então já souberam da desgraça acontecida, não é?

    Chico Pongá, percebendo que sucedera qualquer coisa que eles ignoravam, indagou:

    _ Que desgraça?

    _ Pois Joana Borora, a mestra de nossos filhos, foi hoje raptada pelos índios Xavante!

    Houve um sussurro de assombro entre os cavaleiros. E Chico Pongá, compreendendo o que se passara com Quinquim, olhou para Quincas Venâncio com uma expressão de piedade. Como se tivesse havido transmissão de pensamento entre os dois amigos, Quincas Venâncio o olhou no mesmo instante e falou, desanimado:

    _ Ah! Agora já sei o que se passou com meu filho: foi, também, raptado pelos índios!

    Embora não tivesse falado muito alto, todos o ouviram e uma nova emoção contaminou a assistência. Nico Manco não se conteve e perguntou:

    _ Seu filho desapareceu?

    _ Sim, confirmou Quincas Venâncio, no auge da aflição.

    _ Então, não tenha dúvida: teve a mesma sorte da mestra! Disse o comerciante.

    Mas Chico Pongá queria esclarecimentos sobre o que acontecera na vila. E indagou:

    _ Como foi o caso de Joana Borora?

    Nico Manco pôs a mão sobre o ombro de um menino que estava ao seu lado e informou:

    _ Meu filho é que sabe como a coisa se passou. Estava na aula, quando se deu o ataque, e chegou aqui que nem podia dar palavra, de tanto correr! Voltando-se, então, para o menino, acrescentou:

    _ Conte, Antoninho, o que você viu, aqui para os amigos...

 

8 - O Sacrifício de Joana Borora

 

Antoninho deu um salto para cima do balcão, sentou-se de pernas cruzadas, hesitou um pouco, olhando curioso aquelas fisionomias, fatigadas pelo trabalho e pela emoção, e começou a contar:

    _ Nós estávamos na sala fazendo uma cópia que dona Joana tinha passado. Eu quebrei a ponta do lápis e parei para fazer outra. Nisto ouvi um assobio fininho demorado, seguido de um canto de jaó e me levantei para espiar a mata, da janela dos fundos. Olhei, tornei a olhar, mas quem diz que eu descobria o jaó! Continuei a fazer a ponta sempre olhando, e nada! Já ia voltar para o banco quando escutei outro assobio fininho; firmei os olhos e descobri, então, três caras de índios entre as moitas, espiando a escola. Fiquei frio! Só aí percebi muitas outras caras espalhadas pelo mato. Disfarcei meu susto, voltei para meu lugar e chamei a mestra:

    _ Chegue aqui depressa, dona Joana, para ver meu trabalho.

    Ela se aproximou e eu lhe disse em voz baixa, para não espantar a classe:

    _ Mestra, há índios no mato, espiando a escola.

    _ Tem certeza? Indagou ela, também em voz baixa.

    _ Tenho.

    _ São muitos? Perguntou ainda.

    _ Que nem formigueiro, respondi.

    Vi que o rosto dela ficou transtornado, mas não perdeu um momento; sentou-se ao meu lado e avisou a classe, dizendo:

    _ Escutem bem o que vou dizer e façam logo o que eu mandar. Antoninho acaba de ver índios rondando a escola, do lado da mata.

    Aí alguns meninos começaram a falar, mas ela não deixou dizerem nada, explicando, zangada:

    _ Calem a boca e escutem o que eu digo! Estamos correndo perigo de ser atacados. Mas se vocês me obedecerem, nenhum sofrerá coisa alguma. Não precisam pegar os cadernos nem mochilas. Abaixem entre as carteiras pra que eles não vejam vocês e pensem que a escola está deserta. E vão saindo, de quatro, pela porta da frente, sem barulho, um atrás do outro, depressa! Na rua corram o mais que puderem, mas sem gritaria. Não dêem um pio! É preciso que eles não percebam que vocês estão fugindo. Assim que chegarem à vila, peçam socorro para mim! E agora vão! Depressa! Não percam tempo! Eu garanto a vocês que não há de suceder nada! Vão!

     Mal a mestra acabou de falar, saímos engatinhando da sala de aula, alcançamos a porta da frente e desandamos a correr pela vila. Já estava quase aqui quando ouvi um grande alarido de gritos e, trepando numa árvore, espiei para o lado da mata; foi quando vi nossa mestra correr na direção das moitas onde apareciam as caras dos bugres e sumir entre elas.

    Antoninho estava triste quando acabou sua narrativa. O pai, então, retomando o fio da conversa, disse:

    _ O resto da história eu posso contar. Assim que os meninos chegaram dando alarme, eu e todo esse povo que aqui está, corremos em socorro de Joana Borora, mas não encontramos mais sombra dela nem dos índios! A escola estava abandonada, com as janelas e portas abertas, os cadernos dos alunos nas carteiras. Entramos pela mata adentro, mas, por mais que procurássemos, não achamos nada que indicasse o rumo que tomaram.

Quincas Venâncio resmungou, com desconfiança:

    _ Pelo jeito, essa Borora estava era combinada com os bugres, que são gente dela.

    Todos protestaram e Nico Manco respondeu:

    _ Não diga isso, seu Venâncio. Joana Borora nunca faria uma coisa dessas!

    _ Então como é que correu ao encontro deles? Não se explica...

    _ Pois eu explico, continuou o negociante. De toda a nossa busca, só encontramos isto: e mostrou uma flecha emplumada que encostara à parede, acrescentando: os que conhecem suas armas sabe que este tipo de flecha pertence aos Xavante, que vivem espalhados para lá do Rio das Mortes, a mais de dez léguas daqui. E esses índios são justamente inimigos dos Bororo.

     _ Quer dizer que a professora correu, por gosto, para a boca da onça? Indagou Quincas Venâncio, sem compreender.

    _ Está visto que correu, seu Venâncio, mas sabe por quê? Para dar tempo a que os meninos fugissem. Só pode ter sido isso: sacrificou-se para salvá-los!

    _ É extraordinário! Comentaram, ao mesmo tempo, vários garimpeiros.

    Chico Pongá perguntou então, interessado:

    _ E será que ela está com vida ainda?

    _ Por certo que está, disse Nico Manco, os Xavante, quando querem matar alguém, não fazem cerimônia; no mesmo lugar em que a aprisionam, metem a borduna na cabeça da vítima e, como lembrança, deixam a arma de morte junto a ela. Mas o Índio não é sanguinário. Só ataca por vingança ou em defesa da terra, quando sofre alguma injustiça. Demais, nós percorremos as picadas da mata e não vimos sinal algum de violência. Olhe: esta flecha não foi usada. Algum deles a deixou cair ao retirar-se.

    Quincas Venâncio, pensando na sorte do filho, que devia ser bem parecida com a da professora, ainda perguntou:

    _ Mas se eles não a mataram, que pretenderão fazer com ela, seu Nico?

    _ Mantê-la prisioneira, torná-la escrava, para se vingarem dos brancos e dos Bororo que são seus inimigos.

    _ Precisamos libertá-la; uma coisa me diz que, onde ela estiver, estará o meu filho.

    _ Nem há dúvida. E era o que estávamos combinando. Quase todos estes homens têm filhos alunos de Joana Borora. Nosso estima por ela é um fato. Nenhum de nós se negará a qualquer sacrifício para trazê-la de volta.

    _ Pois então, por que estamos perdendo tempo? Vamos embora!... animou Chico Pongá.

    _ Vamos embora, repetiu Quincas Venâncio, procurando a saída da loja.

    _ Calma, seu Venâncio, ponderou Nico Manco. Precisamos armar-nos primeiro; precisamos preparar-nos para uma longa viagem, pois sabe Deus onde iremos encontrá-los!... Esta madrugada partiremos. Combinado?

    _ Combinado! Responderam todos os presentes que se dispersaram, em grupos.

    Pela madrugada, cem cavaleiros, armados e com farta provisão de alimentos, partiram na direção do Rio das Mortes.

 

9 - Na Taba Inimiga

 

    Três dias depois, na aldeia dos índios Xavante, escondida nos confins da Serra Azul, à margem do Rio Noedori, afluente do Rio das Mortes, houve, ao cair a tarde, um rebuliço de festa: é que chegava um grupo de índios, trazendo dois prisioneiros: Joana Borora e Quinquim.

    Joana chegou primeiro; vinha amarrada pela cintura e pelos punhos a uma forte muçurana. Caminhara a pé léguas e léguas tangida pelos indígenas. Durante toda a penosa jornada, fingiu que não entendia a conversa deles. Mas compreendera tudo! Quando menina, aprendera a falar vários dialetos indígenas, inclusive o dos terríveis inimigos de sua gente Borora. E graças a isso, ficou sabendo que a intenção dos Xavante era atrair gente branca para fazer-lhe guerra, em tocaias na floresta, antes que fosse descoberta a situação da taba. Aceitava os alimentos que lhe davam e dormia quando eles dormiam. Em suas veias corria também sangue de bugre o que lhe dava certamente resistência para a caminhada e uma coragem inaudita!

    Quinquim chegou depois; vinha desmaiado de cansaço e medo, dentro de um baquité, uma espécie de cesto comprido, às costas de um possante Xavante.

    Ao entrar no terreiro da taba, libertaram Joana da corda que a manietava e tiraram o menino do baquité, como se tira um franguinho de um jacá. Largaram-no então no solo, estendido como morto. Só aí Joana descobriu que havia mais um prisioneiro! E seu coração bateu descompassado... De onde estava, não podia ver o rosto do garoto e uma dúvida cruel fê-la tremer: estaria ali, maltratado e faminto, um de seus pequeninos alunos?

    Sem demora, inúmeras mulheres se acorreram e se puseram a palrar em torno dela e da criança, como um bando de galinhas assustadas, à vista de alguma cobra. Nisto o cacique, coberto de tatuagens no rosto, no peito e nos braços, surgiu da oca central; espalhou, com um urro, aquele bando de mulheres, e se pôs a falar com o índio do baquité.

    Joana percebeu que o índio explicava ao chefe como apanhara o menino, quando dava milho às galinhas, no terreiro de sua casa. Como gritasse muito, tapara-lhe a boca e carregara-o para o mato, onde, no dia seguinte, se encontrara com os outros do bando. Viera sempre varando por dentro do cerrado fechado, para evitar encontro com os brancos.

    Mas o cacique não estava satisfeito. E indagou, irritado:

    _ Por que não trouxeram os curumins da Borora?

    Por esta pergunta, Joana verificou que eles conheciam a escola há muito tempo e haviam atacado com o plano de agarrar os alunos.

    O índio do baquité respondeu ao cacique que não havia curumim, que a oca da Borora estava vazia. O chefe indagou ainda:

    _ E que tem este curumim branco?

    _ Gritou tanto que morreu de gritar.

    O cacique se abaixou, pôs a mão sobre o nariz de Quinquim e afirmou:

    _ Não morreu não. Está dormindo. E se voltou para examinar a professora. Joana estava pálida e abatida de emoção e cansaço. Mas olhou firmemente o cacique. Este achou-a bela, tanto assim que sorriu e disse na língua geral:

    _ Cunhã porã!

    Mas logo em seguida cuspiu com desprezo, empurrou-a para o lado e disse:

    _ Orarimogodoque!

    Joana viu que ele não se enganara pois orarimogodoque é justamente o nome nativo dos índios Bororo. E ele a desprezava porque os Bororo são pacíficos e amigos dos brancos.

    _ Que devo fazer com os prisioneiros? Perguntou o índio do baquité.

    _ Ponha-os na oca vazia. As nossas mulheres lhes darão alimentos e os obrigarão a trabalhar, de amanha em diante.

    _ Mas o curumim, quando acordar, vai fazer um berreiro enorme e a aldeia acabará sendo descoberta pelo inimigo! Explicou o índio que aprisionara Quinquim.

    _ Pois se ele gritar levem-no para brincar com os nossos curumins, e ele logo se animará. Mas não o deixem fugir, concluiu o cacique afastando-se.

    Joana escutou também estas palavras, mas não deu a menor demonstração de haver compreendido. Continuou a olhar o chão em silêncio, embora uma enorme angústia tivesse invadido seu coração.

    E como já era noite, os prisioneiros foram levados para a oca. Quinquim não dava acordo de si.

    Mal ficaram sós, Joana Borora arrastou-se pelo chão e foi examinar, de perto, o rosto do menino. Em pouco seus olhos se acostumaram ao escuro, e ela percebeu que seu companheirinho era um menino desconhecido e não um de seus queridos alunos. Deitou-se então a seu lado, na terra batida, e dormiu profundamente.

 

10 - A Primeira Noite

 

    Alta noite, Quinquim acordou, chorando e chamando:

    _ Mãe! Mãe! Ó mãe!

    _ Que é, meu filho? Não chore que eu estou aqui, respondeu-lhe Joana Borora, com voz suave e carinhosa.

    Quinquim não se espantou de ouvir uma voz como a de sua mãe, porque ainda estava tonto de sono. E pediu:

    _ Acenda o lampião, mãe.

    Como poderia Joana atender àquele pedido? Numa oca de índios não há lampiões, e luz, na taba, só a das fogueiras... sua inteligência, porém, dava remédio para tudo. Por isso falou assim:

    _ Se eu acender a luz posso acordar seu pai: ele está muito cansado e precisa ir cedinho para o trabalho. Vamos falar portanto bem baixinho!

    Nisto Quinquim sentiu o corpo todo doído e percebeu que estava deitado no chão.

    _ Onde é que eu estou? Perguntou apalpando em torno. Por que não estou na rede?

    _ Você dormiu na rede. Mas teve um pesadelo e caiu...

    _ Um pesadelo? Que é isso?

    _ Sim, um sonho mau, com índios que o atacavam e o levavam prisioneiro, para muito longe...

    _ Então tudo foi um sonho?

    _ Foi, sim. Um sonho horrível! Você gritando...

    _ Então vou para a rede de novo.

    _ Não, meu filho, respondeu Joana Borora, segurando-o. Você já caiu duas vezes! Fique no chão mesmo; senão sonha de novo, cai outra vez, e a nova queda pode ser de mau jeito...

    _ Mas meu corpo está todo doído.

    _ Eu não disse? Dois tombos não são brincadeira! Imagine agora um terceiro! Deite a cabeça aqui no meu colo, que vou lhe contar uma história.

    E Joana Borora não esperou resposta: tomou o menino nos braços e aconchegou-o, maternalmente.

    _ Que história vai ser? Perguntou Quinquim, interessado e consolado com o carinho de Joana.

    _ Uma que você ainda não conhece. Uma história de jabuti. Você se  lembra das aventuras do jabuti?

    _ Qual?... Aquela com a onça?

    _ Aquela e qual mais?

    _ A da aposta com o veado?

    _ Sim... e qual mais?

    _ Aquela com a anta?

    _ Sim... E as outras?

    _ A do caipora, a do teiú, a dos meninos, a do homem...

    _ Muito bem! Já vejo que você se lembra de muitas. Então vou lhe explicar por que razão os índios consideram o jabuti o bicho mais esperto do mato e espalham essas histórias tão divertidas. Você quer saber?

    _ Quero, respondeu Quinquim.

    _ Quem olha um jabuti pensa que ele é o animal mais bobo do mundo, não pensa?

    _ Pensa.

    _ Mas nós sabemos que ele é o mais esperto de todos, não sabemos?

    _ Sabemos.

    _ Então por que será isso? Você sabe?

    _ Não.

    _ É que antigamente os jabutis eram moleirões e bobinhos como parecem ser hoje. Mas um dia, nasceu um jabuti que parecia igual aos outros; era,no entanto, bem diferente, muito curioso, perguntador e doido para saber tudo. Era um bicho extraordinário e tinha o nome de Carumbé _ avisou Joana Borora, acomodando melhor o menino em seu regaço. É a história desse jabuti que vou lhe contar hoje.

    Quinquim sentia-se feliz no aconchego daquele colo que parecia o de sua verdadeira mãe. E Joana Borora, para lhe dar aquela tranqüilidade, procurava esquecer a desgraça que caíra sobre a cabeça de ambos.

    Quando clareasse o dia, o pequeno prisioneiro estaria em melhores condições para conhecer a dura verdade; contava com sua afeição, teria confiança nela. E tudo havia de parecer aos dois menos terrível.

11 - A História de Carumbé

 

E Joana começou a contar:

    _ Carumbé nasceu à beira de um córrego, no fundo da floresta virgem. Era tão pequenino, tão pequenino, que poderia caber na palma da mão de uma criança. Mais parecia uma pedrinha escura e chata, polida pelo rodar contínuo das águas. Isso quando dormia. Acordado, porém, aquele pedregulho criava pernas, botava a cabecinha para fora e se mexia sem parar. Sim, porque o carumbezinho era um andejo de força maior e está para nascer menino mais curioso do que ele.

    Passara os primeiros dias de sua vida olhando as águas que corriam, corriam, sem nunca voltarem para trás. E aquilo o deixava intrigado! O rio não morava no alto da mataria, escondido nalgum buraco da terra?! Por que então as águas nunca voltavam para casa, como ele e seus quatorze irmãos gêmeos faziam, quando era hora de dormir?

    Às vezes esticava o pescoço e ficava olhando para cima. Contemplava as folhas do copado arvoredo, que tapavam quase todo o sol e o céu azul. Cada dia as folhas lhe pareciam mais distantes, mais altas, sempre subindo, subindo, curiosas de ver as nuvens de perto, sem saudade da terra...

    Se olhava em torno, via sempre os mesmos galhos, os mesmos troncos, os mesmos cipós emaranhados, as mesmas raízes contorcidas. E enchia os irmãos de perguntas: Será que na terra só há árvores, árvores e mais árvores?

    Os maninhos, porém, sabiam menos que ele e nem se davam ao trabalho de responder. Só queriam se divertir e catar frutos de taperebá, manjar predileto de todos os carumbés. Mergulhavam no rio, nadavam à vontade e voltavam para a areia, onde dormiam boas sonecas, encolhidinhos, na casca. Carumbé perguntava, perguntava, perguntava, e eles... moita! Desesperado com o silêncio dos irmãos, recorria à D. Jabota, pesadona e pachorrenta, mas sempre atarefada com os arranjos da toca:

    _ Mãe, ó mãe! Me diga uma coisa!

    _ Que coisa, Carumbé?

    _ Será que o mundo é uma floresta só?

    _ Você tem cada pergunta, Carumbé!

    _ Responda, mãe, que eu quero saber. É ou não é?

    D. Jabota tinha a cabeça fraca para pensar e ficava muito atrapalhada. Nunca lhe haviam falado nisso, nem lhe passara tal coisa pela mente. Seus antepassados haviam nascido e vivido naquelas redondezas e seu mundo era aquele mato... por isso hesitava um pouco, mas acabava dizendo:

    _ De certo que é!

    _ Então este mato não tem fim? Indagou ele.

    _ Tem sim, meu filho. Tudo tem fim.

    _ E no fim do mato o que é que há?

    _ Nada.

    _ Nada, o que é, mãe?

    _ Ora, meu filho, que pergunta! Nada, é nada...

    _ Ah! Eu queria ir no fim do mato para ver “nada” como é...

    _ Deixe de estar bobeando, meu filho. Seja como seus irmãos que não fazem perguntas. Olhe: jabuti não precisa pensar... Vá brincar e me deixe sossegada.

    Carumbé ia, mas ia triste, porque não se conformava em deixar de pensar... E tanto assim que ia pensando:

    _ Se é para não pensar, para que então a gente tem cabeça?!

    Desde esse momento já não fazia perguntas nem à mãe nem aos irmãos, mas a si mesmo. E jurou: um dia haveria de dar resposta à todas as suas dúvidas.

    Ora, uma tarde em que o céu estava enfarruscado, ameaçando chuva, ele foi até a beira d’água, olhou para a outra banda e lançou esta pergunta ao vento:

    _ Que haverá do outro lado do rio?

    O vento não respondeu. Nisto, a voz de taboca rachada pareceu zombar dele:

    _ Xué... xué... xué... xué...

    Carumbé voltou-se e deu com um grande sapo. Então indagou:

    _ É o sapo Xué?

    _ É... é... é...é... respondeu o sapo com a mesma ronqueira.

    _ Foi bom o senhor aparecer. Eu queria perguntar-lhe uma coisa...

    _ Que é?... que é?... que é?...

    _ É verdade que o senhor já atravessou o rio?

    _ É... é... é... é...

    _ Então me diga: o que tem do outro lado do mato?

    _ É... é... é... é...

    _ Só mato?

    _ É... é... é... é...

    Então começou a choveu. Carumé voltou desenxabido para a toca, enquanto o sapo grande recomeçava a sua cantilena:

    _ Xué... xué... xué... xué...

    Joana Borora ia continuar a história quando reparou que o menino dormia... A cantilena do sapo Xué dera ótimo resultado. Por isso ela aproveitou o tempo para dormir também até o amanhecer.

 

12 - A Segunda Mãe

 

Quando o dia clareou, Quinquim abriu os olhos e viu Joana Borora já acordada olhando para ele com ternura. Teve um sobressalto e perguntou, sentando-se:

    _ Quem é você?

    _ Psiu! Disse ela, pondo o indicador sobre os lábios. Você é um menino inteligente e corajoso! Escute o que vou dizer e não se espante nem fale alto, porque temos de conversar um segredo. Você gosta de segredo?

    Quinquim respondeu, com um ar meio assustado:

    _ Gosto.

    _ Então me diga o seu primeiro nome.

   O menino esfregou os olhos, arregalou-os para a professora e respondeu:

    _ Meu nome é Quinquim.

    _ Como?

    _ Meu nome é Joaquim Pereira Venâncio, mas me chamam de Quinquim.

    _ Muito bem, Quinquim. Agora você vai ficar sabendo quem eu sou: fui batizada com o nome de Joana Maria dos Anjos, mas me tratam de Joana Borora, porque sou filha de um cacique dos índios Bororo.

    Quinquim teve um sorriso de compreensão e mudou logo de tratamento:

    _ Ah! A senhora é que é a mestra da vila de Poxoreu?

    _ Sou eu mesma! Você me conhecia?

    _ Meu pai que falou. Ele quer em botar na sua escola, para a senhora me ensinar a tomar conta de mim, quando ele estiver no trabalho.

    Só aí Quinquim percebeu que não tinha roupa e que a professora se achava apenas coberta com uma pele de maracajá. Ia indagar a razão disso, quando Joana explicou:

    _ Pois então?! Já estou tomando conta de você...

    Ao ouvir essas palavras, Quinquim, que já estava bem acordado, olhou em volta da oca e para o teto baixo em forma de abóboda, e teve uma decepção:

    _ A escola é este forno?

    _ Não, Quinquim. A escola não é aqui.

    _ Onde é que estamos, então?

    _ Espere, que vou lhe contar. Você se lembra que teve um pesadelo?

    _ Foi sim, um sonho mau.

    _ Isso mesmo: um sonho mau, com índios...

    _ Lembro, sim.

    _ Lembra-se que caiu da rede duas vezes?

    _ É mesmo.

    _ Lembra-se também da história do Carumbé que comecei a contar-lhe? Continuou Joana, a despertar, com cuidado, a memória do menino.

    _ Ah, já sei! Agora estou compreendendo: foi a senhora que em contou a história e eu pensei que era minha mãe que ainda estivesse viva.

    _ Então, vamos fazer um trato: eu fico sendo sua segunda mãe. Está bem?

    _ Está, respondeu Quinquim, sem muito entusiasmo.

    _ Mas as mães e os filhos se abraçam, não é?

    _ É, sim senhora.

    _ Então venha me dar um abraço, meu filho.

    Os dois se abraçaram silenciosamente.

    E foi assim, abraçados, que Joana Borora contou a Quinquim a terrível verdade, falando-lhe baixinho, rente ao ouvido:

    _ Quinquim!

    _ Senhora!

    _ Você tem confiança em sua segunda mãe?

    _ Tenho.

    _ Se eu lhe disser que não tenha medo, você terá medo?

    _ Não.

    _ Então vou lhe contar uma coisa, mas não tenha medo!

    _ Que coisa?

    _ O pesadelo que você teve não foi sonho não.

    _ Então o que foi?

    _ Foi verdade.

    _ Verdade? Perguntou ele, erguendo a voz com assombro.

    Joana apertou-o ainda mais nos braços recomendando:

    _ Quietinho! Foi verdade, mas não aconteceu desgraça nenhuma. Você está vivinho e eu estou aqui para fazer-lhe companhia até seu pai chegar.

    _ Quando é que ele vai chegar?

    _ Chega logo. Qualquer dia. A esta hora já está a caminho. Mesmo que ele demore um pouco, fique descansado que ele chega.

    _ Mas ele sabe onde eu estou?

    _ Na certa sabe. Mas se não souber não tem importância porque ele descobre logo.

    _ E onde é que eu estou? Perguntou ainda Quinquim.

    _ Já vou contar. Mas quero saber primeiro como é que os índios trouxeram você para cá.

13 - O Caso de Quinquim

 

    E o menino começou a contar:

    _ Foi assim: Meu pai me deixou só em casa porque eu estava com muito sono. Assim que o sol esquentou, porém, despertei e pulei da rede. Senti fome e almocei. Meu pai não queria que eu abrisse a porta por causa da “pintada”. Então fui para a janela. Nisso, ouvi as galinhas cacarejando e pensei:

    _ Coitadas! Devem estar com fome. Vai ver que o meu pai se esqueceu delas.

    Enchi uma cuia de milho e abri a porta sem me lembrar da ordem. Fiquei entretido um bocado, jogando milho dentro do galinheiro e vendo a briga delas por causa dos grãos. Quando em virei para guardar a cuia vazia, que susto! Imagine que dei com um índio atrás de mim! Quis correr, mas ele me agarrou com tanta força que quase me quebrou os ossos. Gritei como um doido! Ele, porém, me tapou a boca e, pegando-me ao colo, correu comigo para o mato. Fiquei sem ar, de tanto que ele me apertava a boca. Mas sempre que podia, gritava!... Afinal, lá longe, ele me meteu num cesto, fechou-o e botou-o nas costas. Eu gritei, gritei, gritei, até que não pude mais. Então dormi. Quando acordei, no outro dia, estava solto, mas vários índios me espiavam. Comecei a gritar outra vez. Eles em deram frutas do mato, mas não aceitei. Então me puseram de novo no cesto e tocaram para adiante. E só paravam para abrir o cesto e me oferecer alguma coisa para comer. No princípio, eu só gritava. Acho que não tinha ninguém no mato caçando ou tirando lenha, não é? Ninguém me ouviu!

    Aí eu estava com muita fome e comecei a aceitar tudo que me davam. Até uma perna de macaco, que eles pegaram eu assaram, eu comi... faltava sal, mas estava boa.

    Depois da segunda noite, sentia o corpo doído de estar todo o tempo encolhido, de mau jeito, no cesto. Tive medo, comecei a gritar e a chorar de dor, até que perdi o acordo de mim, acho...

    _ Então, agora, já adivinhou para onde o trouxeram...

    _ Para este forno grande.

    _ Forno, Quinquim? Isto não é um forno, é uma cabana de índio.

    _ Eles moram aqui?! Nós vamos morar com eles?!

    _ Não, esta oca é só nossa! Só nós dois é que vamos morar aqui até que seu pai venha. Você não quer morar comigo?

    _ Quero.

    _ Então? Não estamos tão mal assim.

    _ Mas onde é que eles moram?

    _ Nas outras ocas, vizinhas desta. Quando você sair, verá.

    _ Eu queria ir embora. Por que não vamos?

    _ Porque eles não deixam.

    _ A senhora podia pedir...

    _ Eles não me atendem.

    _ Mas não são seus amigos?

    _ Não, são inimigos. A minha raça é Bororo e eles são Xavante.

    _ Os Xavante não gostam dos Bororo?

    _ Não.

    _ Então estamos presos? Que vai ser de nós?! Perguntou Quinquim, compreendendo afinal todo o horror da situação.

    _ Sim, meu filho, estamos presos, mas não se assuste, porque me prenderam também e eu não tenho medo deles. Sei que eles são valentes, vingativos e guerreiros. Mas não são malvados. E, vendo que o menino começara a tremer, apertou-o de encontro ao peito, explicando:

    _ Faça tudo o que eu mandar, que eles não lhe causarão mal algum. Se seu pai demorar eu arranjarei um jeito de fugir. E quando menos esperarmos, estaremos livres, em Poxoreu, tomando parte de uma grande festa, está bem?

    _ Está, respondeu Quinquim. Mas como foi que prenderam a senhora?

    Joana Borora aproveitou a pergunta para contar ao menino a sua história e encorajá-lo com a certeza de que todos os homens de Poxoreu viriam em socorro deles. Isso somando com Quincas Venâncio e seus companheiros, formaria uma tropa formidável.

    _ E nada de medo, ouviu? Recomendou ela por fim.

    O menino ganhou uma grande animação e sorriu, orgulhoso, imaginando seu pai à frente de tantos cavaleiros invencíveis! Mas ainda perguntou:

    _ Será que ele não vai ficar zangado de eu ter desobedecido?

    _ Não. Ele sabe que você já recebeu um grande castigo... Demais ficará tão alegre quando o encontrar de novo que vai esquecer tudo!

    Levantando-se, então, meio acurvada para não bater no teto da oca, disse:

    _ Agora, vamos sair, para ver como é que vão tratar seus hóspedes. Vamos comer o que eles nos derem e vamos fingir que tudo é muito gostoso.

    _ Mas eu vou sair nu? Indagou, aflito, Quinquim.

    _ Você vai sair só com a roupinha que Deus lhe deu. Não se envergonhe. É preciso viver entre os índios como eles vivem.

    E tomando a mão do menino, a professora levou-o para o terreiro.

 

14 - Os Espinhos de Ouriço

 

    Àquela hora da manhã, toda a maloca estava deserta: os homens deviam andar na caça, os curumins brincavam nas moitas, as mulheres tomavam banho no rio. Isso queria dizer que os Xavante não tinham cuidado com os prisioneiros: uma mulher e um menino não precisam ser muito vigiados. Sabiam, além disso, com certeza, que a fuga era impossível!

    A princípio, Quinquim caminhou hesitante, com receio de rever os índios que o haviam aprisionado. Olhou para as cabanas construídas em torno do terreiro circular. Admirou-se que, em todas, a abertura de entrada fosse tão baixinha que não daria para um homem, alto como seu pai, entrar de pé. Mas o vozerio das mulheres, lápara as bandas do rio, vinha até ele. E Joana perguntou:

    _ Quinquim, você sabe nadar?

    _ Um pouquinho. Meu pai ia me ensinar.

    _ Pois então vamos ao rio, que eu ensino. Assim, quando seu pai chegar, você já sabe e lhe faz uma surpresa. Quer?

    _ Q